quarta-feira, 14 de março de 2012

Dica de livro: Extinção, de Thomas Bernhard



“Naturalmente não digo que me tornei o que sou só por influência sua, seria muito exagerado (...) É bem possível que, mesmo que eu tivesse crescido totalmente livre da sua influência, eu não pudesse me transformar em um ser humano na medida do seu coração. Provavelmente seria um homem medroso, hesitante, inquieto (...) mas completamente diferente do que sou na realidade.”
Franz Kafka, em Carta ao pai


A epígrafe acima bem poderia ter saído das mãos de Franz-Josef Murau, narrador do livro “Extinção” de Thomas Bernhard. Neste seu último romance, o autor de grandes livros como “Perturbação”, “O náufrago” e “O sobrinho de Wittgenstein” aprofunda  as bases principais de sua obra, pautada no tema da morte, da anulação, do peso da sociedade e do passado nas ações e pensamentos do indivíduo.
O livro, escrito em primeira pessoa em um estilo narrativo que faz lembrar o fluxo de consciência Joyceniano – são apenas dois blocos contínuos de texto em um livro de mais de 470 páginas -  abre com o personagem narrador recebendo um telegrama que informa acerca da morte acidental de seus pais e seu irmão. O fato o impulsiona à uma digressão pelos meandros da memória, encaminhando o leitor rumo às origens da personagem. É neste esforço de memória, no entanto, que habita a grande engenhosidade da narrativa de Bernhard. Onde para muitos autores a escrita, o testemunho da palavra e a memória é ferramenta de uma espécie de “ressuscitação” do passado, o personagem de Thomas Bernhard procura justamente o oposto, a aniquilação total, a extinção da memória através do verbo.
Extinção conta a história de um herdeiro de uma família da alta burguesia austríaca que vivia na propriedade de Wolfsegg na Áustria há vários séculos. Murau é um homem que odeia seu passado, sua história, o legado de sua família; é um homem que enxerga na maioria de seus parentes, sua antítese, sua própria negação. Enquanto a personagem pauta sua vida nos valores humanos da arte, da cultura, do homem enquanto indivíduo, ele vê em sua família somente o apego prático ao capital, aos ditames da sociedade burguesa, o apresso pelo poder opressor e por suas regras na sociedade. Murau refere-se à sua família como uma família de bárbaros, “advogados” da moral burguesa, defensores de um sistema historicamente opressor, defensores dos valores da igreja católica e do nacional-socialismo (Aqui vale a pena apontar que Bernhard adentra a espinhosa polêmica ao se referir à igreja católica e ao nacional socialismo como responsáveis à decadência social do mundo austríaco contemporâneo ao autor falecido em 1989). Consciente de um mundo e de um passado familiar opressor que o cerca, Murau pretende extinguir o universo a que pertence com sua escrita.

“Meu relato só existe para extinguir o que nele vem escrito, extinguir tudo o que eu entendo por Wolfsegg, tudo o que Wolfsegg é (...) depois desse relato, tudo o que Wolfsegg é tem de estar extinto.”

Personagem estranho e distante da lógica de vida imperativa em Wolfsegg, Murau se sente sufocado frente um passado que não consegue identificar como seu, sente-se aprisionado pelas paredes desta propriedade física e moral. O legado de que agora é herdeiro e responsável não encontra reverberação em seu modo de vida e suas crenças. Murau é um ser cindido entre o legado e a liberdade e, como ser cindido, nunca conseguiu se sentir totalmente extirpado da realidade de sua família. Em sua vida, por mais que tenha buscado maneiras de se apartar de sua história, Murau nunca conseguiu se libertar efetivamente, seu mal estar frente ao mundo nasce dessa relação de dependência com seu passado. Ele diz: “Odiamos como sabemos quem nos sustenta, portanto odeio Wolfsegg mais ou menos por essa razão.” Mais a frente chega a afirmar que “é provável que eu tivesse tido uma evolução completamente diversa, se diversa tivesse sido a evolução de Wolfsegg”. Pautado desta consciência do seu fracasso perante o legado do seu passado, Murau chega a dizer que fez de tudo para se libertar de Wolfsegg, diz: “não me libertei, não me tornei independente, pelo contrário, mutilei-me da forma mais deprimente. Sou uma pessoa mutilada.”  Sua angústia habita neste abismo entre o passado e o livre arbítrio de pensamentos e ações: Se somos fruto das ações, dos pensamentos e ideias de outros, se agimos não conforme uma pretensa liberdade e sim premidos da força do passado, é a ela que devemos direcionar nossa revolta e fazer dessa revolta o nosso testamento, nossa busca por uma verdadeira ação livre, individual. Se somos herdeiros de quem não reconhecemos, como podemos legar ao mundo um testamento, uma ação final, que não seja ele sua própria negação, sua destruição?

“Pouco a pouco temos de repudiar tudo (...) ser contra tudo, para muito simplesmente colaborar com a aniquilação universal que temos em vista, dissolver o velho para no fim poder extingui-lo eternamente em benefício do novo”

É com a chegada do telegrama que informa o personagem acerca  da morte de seus pais, que Murau parece encontrar o ponto de partida de sua real independência. É na morte, esse “ponto final”, que desperta no personagem a certeza de que é na aniquilação que encontrará a tão almejada liberdade. O jogo da aniquilação vira sua arma, para ele é preciso “modificar o mundo destruindo-o (...) aniquilando-o quase a nada, para então reconstruí-lo da maneira que me parece, numa palavra, suportável.” Homem das letras, professor de literatura e filosofia alemãs, Murau encontra na experiência com a palavra, principalmente com o idioma alemão que segundo o personagem “puxa o pensamento para baixo (...) calca tudo contra o chão”, esse jogo catártico  com a memória. A porta de saída de tudo que é enterrado com ela.
   Ao longo de quase 500 páginas vemos Murau atacar com ferocidade as regras do jogo burguês, suas instituições políticas e religiosas, suas crenças mais profundas.  Extinção é uma das raras leituras que podemos encontrar de forma madura o peso opressivo do outro em nossas ações. Se Adorno estiver certo quando afirma que “a origem social do indivíduo revela-se no final como a força que o aniquila”, extinção talvez seja, ao lado de “Carta ao Pai”, uma das poucas respostas que podemos dar à força opressora do passado.
Disponivel pela Cia das Letras:
Extinção, de Thomas Bernhard - Cia das Letras